2/27/2007

Galpão das Artes

É preciso que a noite esfrie
para que o sol chegue

É preciso que a idade chegue
para que a pressa acabe

É preciso que a pressa acabe
para que as rugas marquem

É preciso que as rugas marquem
para que a sabedoria permaneça

É preciso que a sabedoria permaneça

as rugas marquem
a pressa acabe
e o sol chegue

para a graça ficar de vez

Penúltima

Quando a forma
da sua presença
se fez suspiro
e ausência


Quando notei
que te pedia
mais um minuto


Quando anoiteci
ao te esperar
com uma travessa
de gestos e formas

-especiarias

Quando querias
e eu não queria
aceitar mais
o nosso não

quando te aboli
do sistema sem nervo
e me atraquei
no esfumaçado
e desesperador
ar
da tua falta

Quando pediste
um dedo e eu
por proósito
e sem rumo

te dei todo o resto
do importuno
ao taciturno
leve e densa
calda de açúcar
vincada em mim

quando me prometi
ser a última vez
que puxavas
o meu vestido

E me " reprometi"
sempre que você fosse
embora

a última vez

2/21/2007

Beira- Para Gaston

foto sobre o trabalho de Eduardo Fonseca

Estou
à beira da caverna

pedras pedras

repito seus nomes
entre chumaços
de musgos

quero gritar você

quero gritar

cuspir

a sua última gota

vou entrar na caverna

vou deixar um pouco de mim
aqui fora

e pegar o resto
dos restos meus

que sobraram guardados

lá dentro

Por linhas tortas


Foto sobre o trabalho de Fernando Baena



Daí,

quando terminou
a construção da casa

veio a enchente

Poema para um diploma inútil

Tua vida conquistada
na estante
corroída pelo cupim


Tua sauna
troféus títulos currículos
e diplomas
enquadrados
no esquadro solitário
da sala abandonada

Tudo está no chão
no sfá e no degrau

toda a vida gloriosa
e estagnada no teu desleixo


Tu terias te escolhido ouro

se de fato
teu olho consciente
tivesse recebido e percebido

o mérito

A voz da porta-Para Luciana Chaves

Foto sobre o trabalho de Eduardo Fonseca


Você deixou aquela voz
trancada na porta

Não posso mais abrir

não posso mais sair

a minha garganta fincada
na tua tranca

não posso abrir a porta

você trancou a nossa sala
nossos objetos
delitos
e perdas
marcadas no meu olhar

não posso abrir a tranca

a nossa voz
tantas vezes uma
tantas vezes mais de duas

a nossa voz ficou no vão
de uma passagem

passou pra você também?

a nossa voz
ficou presa na saída

Atado foto sobre o trabalho de Eduardo Fonseca


Se você abre
os braços

e não aproxima
seu corpo
do meu

não posso acolher sua história

se você pisa um dedo
e logo salta com medo

não posso afagar sua alma

se você estrela
entre minhas entranhas
de noite e prazer
e se salva sem adeus
dos meus
membros-mar


não posso te mostrar minha
constelação

se você caça
e come

se você corre
e arranha

se você se esconde
tão próximo de mim

é porque você quer
me embaralhar

mas você só pode querer
pegar
este mesmo vagão

Se de outro lado
eu troco os bilhetes
escondo as tranças
caibo no chapéu

e a vida nunca erra você de frente

é confronto
é linha
é nó

E você encontra a agulha
mas não costura
a ferida

você deixa o cheiro
mas não acende a vela

você zopila
a medula com beijos
e não abotoa a camisa

é confronto

é linha

é atado
Foto sobre o trabalho de Maria Ivone dos Santos


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As mãos duas

agarram o poste

é a sua imagem
parada sobre a montanha

é a sua
resistência
aflita
de um vento chegado

a seta aponta
e caneta estourada

janela aberta
uma a uma

duas mãos inconcisas
seguram
o inseguro
Era um bolinho de açúcar em cima da pia. Gritava um líquido sua doçura. O açúcar queimando a doçura. O açúcar passado do ponto. A mesa pedia uma bebida doce. O açúcar montinho se afastava da jarra cheia. O açúcar montinho brilhava a espera esperançosa do líquido ideal.

Aguarde


Perto da roupa
que mofou

uma ausência

pronta para vestir
a incerteza

da sua volta




Foto sobre o trabalho de Laura Miranda

Contra olhos

estes óculos
infelizmente
não podem
me vedar do mundo

você pode fingir que eu
não passei por aqui?


essa mulher que remexe o lixo
cheia de rugas
mesmo que eu tape os olhos
pode ver a dor

pesando na linha
torta
da minha coluna

não posso gritar
não devo fugir
não posso arrancar a página


está tudo aqui

mesmo que queime
mesmo que junte e tente
fazer destes restos
um adubo

mesmo as mãos
que já não podem segurar
os dedos


as roupas mofaram
o sapato furou
o tempo parece
ter acabado

já arranquei os fios
já tapei a peneira
sem sol

entreguei a carapuça

e estou remexendo
o lixo

O avesso da ágata


" A mentira é dita com os olhos brilhantes de uma criança"-Enzo Potel

Aviso

Não sou
esta perna manchada
de sensualidade

Não sou essa mulher
que quer pegar
você

Não sou a mulher que quer
ser consumida
por ninguém

Eu não disse
que um dia seria

Não sou a bandida
que quer roubar
aquilo que veio com você

justamente com você

de outrém

Não sou essa mulher
de batom vermelho
e seios e nádegas
à mostra

não quero nada
que eu não queria com o meu corpo

Não quero que ninguém me queira
por nada
por me comprar
por me pagar

não sou essa mulher
não sei se sou mulher

não sei se escolhi
estar na vitrine

não quero ser
à mostra

não sou esta que coloca
o zíper na garganta
para alguém vir abrir

se eu quero
eu abro

não sou essa mulher
que quer mais
do que quer

eu apenas ponho os pontos nos " is"
é você
quem não leu direito
o meu último contexto

é você quem não entendeu nada
porque não quis entender

é você quem não viu
porque eu estava presente


e eu lá posso ser julgada
se eu escolhi bem aquele
caminho
que você jamais traçaria
sem culpa?

Eu não sou isto

eu sou aquilo que você acha
que não pode acreditar
que sou

e eu falei muitas vezes
e eu assinei muitas vezes
o contrato da verdade

quando errei
eu também confessei


e eu lá tenho culpa
que você tem medo
de eu

ser eu?