1/21/2010
Gaivotas
Foto: Eduardo Green
É como se a grande voz lhe tomasse. Porque você é a grande vítima.E assim todas as asas podem lhe proteger. Mas protegida você perde a coragem. Olhe no espelho da sala: sangue nas imagens cheias de carne sob a película da tv. Os monstros não podem lhe deixar dormir. Eu não posso lhe dar a mão. Apenas estarei sempre aqui para lhe lembrar de passar a manteiga no pão. Servir café novo quando alguém chegar. Eu pensava poder escolher, mas não consigo. Eu pensava querer vencer tudo. Mas só agora sei: poder ficar sozinha. Eu precisava vencer tudo. Mas apenas quero ficar sozinha.Olhando as matas de dentro.Alvoroçando as muralhas com a minha fala. Tremendo as estruturas de cimento, dentro.
Um coração em um abraço futuro. Nada aconteceu ainda. A mesma vontade de plantar uma macieira na janela de alguém que não existe, quer dizer, já existiu...
-Você precisa dar um basta nisso!Voltar para o chão!
Disse Iracema com voz de cobrança, querendo fazer Soraya agir.
Ele fora embora com todos os calçados e roupas, exceto as de frio. Temia sobrecarregar-se de peso para ir. Deixou as malas e ela, chorando na mesa da cozinha.
Soraya sobrou. Sobrou porque não pertencia a mais nada, talvez também a nenhuma regra, nenhum corpo. Mudou todas as roupas do guarda-roupa. Tentou mudar o nome, tirar o dela. Ficava sonoro “Soraya Velasques Mendes”. Agora seria “ Soraya Mendes”, era mais curto, forte de falar. Ficou só com o nome dele. Talvez fosse a última coisa a sobrar, o nome dele colado no dela. Como um pulseira antiga de uma bizavó: rompida, ela ganha outra utilidade.
Mas ficou ali, na casa, debruçada sobre os cantos, estudando piano. Ela queria ficar voltando ao sonho, entre as notas e os passos de dedos entre as teclas. Quando chovia parava diante do vidro da janela e esperava as gotas formarem coroas nas poças.
-Oi! Há alguém atrás da porta?Oh! Que bom que vocês estão aí! Cansei de procurar pelos arredores das ruas. Todas as esquinas estão cheias de plumas e paetês. Brilho nas calçadas e luz azul nos postes.Oh! Não, não creio que você ainda está assim! Soraya meu amor, o sonho acabou!Acabou mesmo!
Silenciosamente Paola deitou sobre as almofadas. Respirou fundo. Acendeu um incenso.Ficou mais um tempo em silêncio. Sabia do apego de Lia aos cabelos alinhados, lustre nos sapatos e tranças ao deitar. Não deixaria Soraya aceitar aquele abismo. E porque ela não aceitava, Soraya também não podia aceitar.Era como um feitiço que deforma o caminho por uma herança genética, o testamento do nome, o registro de sangue no papel. Lia falava com tanta precisão, tanto poder diante das palavras e da matéria... Soraya parecia fraca ao obedecer no seu mais íntimo, apenas olhava para o chão, e suspirava.Seguia um fluxo sem rumo deixando desatar-se de vez.Mas desatada ela voava. Voava como uma folha solta no vento, sem direção.Soraya jamais poderia discordar da irmã.Era um terremoto de indagações, apontamentos e justificativas toda vez que ela resolvia atravessar a fronteira. Tinha ganho novas roupas da irmã, novos sapatos, novo visual. E Lia achava que a sua manipulação era imperceptível.
-Perder pode ser ganhar. Disse Paola
Quando todos os olhares se intercruzaram no velho apartamento cor de ocre. Paola levantou e disse:
- Você se humilha porque é mais fácil ser fraco que forte.
Aquela frase reverberou em Soraya.
Rasgou a roupa do corpo. Colocou um vestido curto. Fez uma Fogueira. Queimou todas as sobras de Velasques, as grandes calcinhas antigas, pegou um batom. Se riscou inteira com o nome dele. Borrou o batom sobre o corpo. Ficou vermelha. Foi andando até a praia.Pegou um pedaço de pano e amarrou na boca da irmã.A deixou sozinha, apenas sussurrou no seu ouvido.
-Se você não pode mandar no sol e na chuva, não pode mandar em mim. Eu agradeço. O sol e a chuva odiariam se render a sua vaidade.
1/05/2010
E só poderei entrar, sozinha.
A moça suou a testa, sentada à beira do rio vestiu-se de calor e dor. Contou as palavras que corriam pelas corredeiras lentas. O lugar rodeado de montanhas, cavalos marinhos sorriam através da transparência das águas. Teve vontade de construir ali uma barraca com pilares esculpidos de barro vermelho. A terra mais bonita é a argila. Fica entre o subsolo e a superfície. Começou a escrever na areia imaginando as letras afundarem até o mais remoto interior da terra, onde a terra nina o mar:
Solidão da beleza. Nos dias de suor, caminho ao longo de muitas mãos, mãos de vespas, patas de mosca, nadadeiras de peixes, queria falar a língua das baleias e chamá-las à beira-mar, queria ficar transparente entre os bares, ouvir todas as conversas da mesa, gostaria de poder desenhar você nu. Traçar nanquim entre as pintas das suas costas. Caminhar sobre meus cabelos. Fazer música com as conchas esquecidas no fundo do mar. Descobrir as paisagens que habitam todos os sonhos quando você está em Zimbros. Vagar sem rumo por um sentido. Céu de melodias me abraça, vermelho, pratas. Perfumes do alvorecer. Você está tentando me falar. Mas agora não posso, estou entrando no portal das flores, estou no fim da lua. Nua no jardim. E só poderei entrar, sozinha
.
1/04/2010
Do mar ao rio, uma canoa de livros.
Mar de livros – uma tenda encobre a corrente de palavras entre muitas margens, das docas de Porto Alegre às margens das alas de A a D. No Centro da cidade, a Praça da Alfândega transbordante de rostos que se intercalam na altura do olhar. As meninas dos olhos vagamente se distraem entre carrosséis de livros pendurados. Crianças miram-se no espelho colorido da fantasia.
Quem pode costurar as direções entre os estandes, se surpreende com os eventos simultâneos: leitores procuram e procuram, malabares dançam ao sol do meio dia, o sax se liberta na música instrumental. De minuto a minuto, os autógrafos, as receitas do escrever, o bate-papo com autores. Palavras faladas ao vento soltam-se em mil bocas desconhecidas e é possível ao passante pescar frases ondulantes no percurso.
Nem a chuva ou as pequenas poças que sobraram sobre as pedras intimidam os interessados. Entrevistas ao vivo nas rádios, livros-CD, livros-desenho, livros-parque e, numa poesia extrema, livros são docemente trocados por brigadeiros.
E a Feira se alastra pela antiga Força e Luz, o Centro Cultural Érico Veríssimo, no terraço da Casa Mário Quintana, na Bienal do Mercosul, nos bares da Cidade Baixa, onde se abrem os abraços dos amigos e de tantos desconhecidos que se aproximam. As afinidades se entrelaçam no calor da descoberta e põem abaixo as diferenças culturais.
A linguagem desagua nas nascentes do ler e escrever. Os livros são começos. As palavras, o caminho.
Assinar:
Postagens (Atom)