3/27/2007

O brilho da verdade*


Cura. Em alguns tons, ela se dissolve em leveza e asasde borboleta; em outros, vem da cachoeira daslágrimas, separações de corpos, sonetos rasgados,contratos assinados. Ela é a altura da queda. Esclarecida por serinteiramente, a cura é a verdade que brilha. Mesmo que ela traga em seu histórico confissões, dores,palavras-buraco, ausências e a foice. A cura é o corte. São aqueles dois braços olhados, percebidos de veia, força e verdade.Toda coisa verdadeira traz consigo um pouco de húmus,restos, sementes, túmulos, tempestades, alvoradas. A alvorada é como uma cura, um suspiro depois do cansaço.

A poesia de Enzo não finge um sorriso, não acena uma ida. Ela atravessa o interior da fruta e cospe ocaroço. Não é uma estrela brilhante por natureza, é uma estrela que percorreu todo o redemoinho da dor para chegar à luz.Quem nunca mostrou o corte da ferida, não pode descobrir o remédio. Quem não se rendeu à poesia de um velho pneu furado, não pode contemplar a via Láctea. Não pode porque a beleza é o que cintila e colore dentro da verdade. A poesia de Enzo é uma das mais belas reuniões de verdades. Não veste máscaras. Devolve ao cruel apontar de dedo social, o âmago da realidade que vivemos. E por que afinal estamos em meio a resíduos de nós, ao invés de todos estarmos embrenhados nas florestas da Cura?A verdade está na bolsa dos escafandristas; a verdadenão tem medo de cortar porque ela sabe que a faca apesar de cortar, pode acariciar a forma e desenhar embalos de mães.A verdade é tão dolorida que purifica, é cavada comtanta intimidade que purifica. Mesmo suja e cinza como o céu de Afeganistão, a verdade voa. Mesmo incrustada de sentimentos e vazios, mesmo oculta de medos e rasgos, a verdade voa. “Pois até os urubus são belos nos largos círculos dos dias sossegados”-CecíliaMeireles.

A poesia de Enzo remove a camada dos remotos adereçoshumanos. Revela, fere, aponta, mas também beija,acalma, entristece e dorme. É a vida do caos. Não entra de mansinho. Invade o quarto, afinca a terra,estia a bandeira, arranca a costura e deixa o trapo.Deixa a tempestade sem passar, deixa a tempestade e o barco dançarem.Como na obra de Turner, toda a sua aflição, todo o seu testemunho sobre fantasma, sobre nosso lado mais penugento. As palavras vivas de “Cura” não mimam, não cuidam, não adocicam. Apenas removem as amarras e couraças do mundo e revelam. Revelam aquilo que todos nós precisamos ao menos perceber, chegar perto e sentir. Mas isso não significa sentir prazer. A revelação de algo em nós é tão surpresa, que nos treme inteiros.


-Texto para o Prefácio do novo livro de Enzo Potel intitulado de "Cura"

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