4/25/2007

Prefácio para Trêmulo de Enzo Potel- Com o meu sorriso de um sim que permite...

Beleza não é algo relativo. Quem ama o feio, interessante lhe parece. Bonito, não. As rédeas da mente podem levar as raízes do gosto para lugares excêntricos, mas jamais alguém negará o espanto e encantamento de uma estrela-cadente fugindo no céu da madrugada, porque a substância básica da beleza é a raridade.
Portanto não me contenho em dizer que a poesia de Ryana é a beleza espelhada e cria em si o vôo dos pavões. Ryana é raridade abarcando grandezas delicadas, iras benevolentes em suas estrofes. Nem que um poema seu seja lido numa remota casa de pano da Mongólia, qualquer pessoa que abra mais do que os olhos pela manhã, entenderá o que sinto.
Portanto “Joio”, meu mais amado poema em “Trêmulo”, é a tradução do que é belo. Nunca alguém falou com tanta perfeição sobre o arrependimento, este cisne que já nasce em cativeiro: no seu deslizar sereno sob as águas, não se observa a convulsão desesperada das patas submersas.
Quando Ryana diz que está na “epístola dos nomes negros” por tantos trocadilhos, mostra os trapos do que outrora foi uma vestimenta, o tecido religioso daqueles que confundem humildade com masoquismo. Está agora com as pernas à mostra, mas não quer ser vitrine. E “Aviso” martela com genialidade todo esse estado de maturidade, em toda a sua extensão.
Aliás, os poemas de Ryana não têm medo de se prolongar. As árias de Mozart também eram longas, mas brilhantes. Ele sabia que cada clave tinha o seu Sol.
Ryana aceita o Sol mas também colhe com a geada, pois a idéia de uma safra maravilhosa nos faz tremer tanto quanto uma má. Nós trememos com a implosão de um prédio e no despertar de um suspiro na medula. Trememos de frio e trememos no gozo. Este livro abre-se justamente no momento do choque, para doar órgãos a sentimentos na sala de espera da comodidade. Sentimentos que preferem muitas vezes não ganhar palavras. Mas Ryana já cansou de aguardar alvoradas mais justas. Se é pra doer, que doe em nós dois, ao mesmo tempo.

Enzo Potel

4/03/2007

Do amor sempre fica um muito -para Drummond



De tudo
tudo mesmo
o que ficou foi o amor

das mandíbulas mordidas
dos sonhos cortados
da sonolência da razão

disso tudo
o que ficou ainda
foi o amor

da perda do tempo
de partir

do latejar incessante
da lembrança riso
das facas quebras
das promessas fracassos
dos sonhos redemoinhos
das tentativas vãs

disso tudo

o que ficou

foi amor


Da aliança trancada
do feitiço sem feiticeiro
do ganho perdido em querer
do banho só
da repetição dos dias

do humor engavetado
no mau humor do café
em xícara de dois
solidão

da perda de tempo
em partir
da parte que se parte
do todo que que se resumiu
em

par te

ida

sem volta


do realinhamento
dos botões

das almofadas
com começos de nome
do casal
impregnadas no encontro
dos gostos
que vem do cheiro


da última lâmpada acesa
do fio da faca
da gana de querer
amarrar
o santo

da cama vazia
divida ao meio

do grito contido
no travesseiro testemunho
da desilusão

da branca espera dos atrasos
dos sapos digeridos
dos sapatos perdidos
e achados
em quatro pés

da respiração ofegante

do rulminar
em fúria
de querer segurar

dos dois olhos
que esperavam
a volta na janela

do sol que se abriu

da nuvem que se apagou

da saia amassada
na rede em rendas
de balanço
paradas no gancho

de toda a certeza vivida
na varanda do verão

de todos os desenhos
rabiscados

todos os calos
todas as vistas
na torre
sólida
de dois íntimos grudados
paralelamente
em direção
além


ainda assim insoluvelmente
insalubremente

triste e parado

ficou

de janelas embaçadas
cacos colados
e uma trégua

só ficou
se revirando na cova

o amor

Orgulho*


Não há troca.

É uma exposição mútua

de tendas túmulos

presas

sal pérolas

sonhos secos

princípios.



Pronto.

Eu não te mudei.

Você não me mudou.

Negócio fechado.


*Enzo Potel do livro " Cura"

*Imagem Philip Taaffe

4/02/2007

Indiara Nicoletti Ramos- Assombrear


Assombrear

Ao caminhar na rua assombreio a calçada com a sombra do corpo e da saia próximo ao poste.Atiro a ponta do cachecol para trás do ombro que assombreia meu pescoço e me protege do vento.
O cachecol aquece o coração assombreado pela hipótese do fruto do choque de temperaturas.Meu corpo quente, o vento gelado.
A lã que derrete a friagem e protege a carne do vento, impedindo que a testa se assombreie de muco e eu me tente a ficar na cama de manhã.
A coberta assombreia o corpo na cama e de sua sombra não quero me libertar.Assim como pássaro no ninho.
O batom sombreia de vermelho a fronha branca.Estava muito cansada para lavar o rosto.E afoita para saciar o desejo dos corpos que se assombreiam na noite. Iluminados pela luz das estrelas.
O brilho vem de dentro, pois se a estrela me ilumina eu assombreio teu caminho.
Assombreio teu rosto que me ilumina com o brilho das estrelas nos olhos.Seus olhos brilhantes feito duas estrelas penetram meu coração já apaziguado e me assombreio de desejos.
Olhos sombreados, pelo ato de assombrear a pálpebra bem de leve com dedos lânguidos mergulhados ao vinho.
Olhos que se sombrearam pelo instante de consciência, de lembrança dos corações que pulsam juntos e se despedem.
Olhos que sombreiam o caminho das estrelas...




É manhã, Os pássaros cantam, desperto antes do despertador.Me coloco diante da pia e assombreio o espelho com um sorriso irônico e debochado após enxugar o rosto com a toalha.
Rio de mim mesma, assombreada com o sonho de despertar com o canto dos pássaros que anunciam o nascer do dia.
Sendo que rotineiramente esses cantos assombreiam a hora em que me deito, exaurida e assombreada pela lua que é o sol de toda escrita.
Assombreio o desenho da boca com batom vermelho, os olhos assombreio com a luz do despertar que se reflete no espelho.
Sigo assombreando a nuca com o dedo embebido de perfume, hoje é almíscar.
Almíscar que assombreia o caminho da abelha e da borboleta, almíscar assombreada pelo vento que leva o evaporamento da essência assombreada pelos raios de sol.
O dia passa, dia cheio de luz e sol.Mas quantos sois são necessários para derreter o assombreamento que plantaste em meu ser?
Pergunto a mim mesma quando os olhos florescem no espelho, de novo o espelho.Aproveito para assombrear a boca, retoco os lábios vermelhos assombreados pela lembrança dos teus beijos.
Caminho de volta para casa, o sol já se despediu há horas e meus pensamentos assombreados de emoções navegam em direção à Lua.Assombreio a calçada com a sombra do corpo e da saia próximo ao poste.
Assombreada pela lembrança da luz dos teus olhos para diante a cantina.Atiro a ponta do cachecol para trás do ombro que assombreia o pescoço e me protege do vento.
Meu coração assombreado pela hipótese do muco assombrear a testa se aconchega e estabiliza.
Mas nem toda lã é suficiente para derreter o assombreamento de uma paixão.Te vejo,você me olha assombreado por tua namorada.
O brilho de estrelas dos olhos se encontram, assombreados pelo instante de consciência do que é. A consciência assombreada repentinamente pela lembrança do que foi.
Meu coração se assombreia mais ainda, me levando ao impulso natural de subir as escadas da cantina em direção ao seu encontro.
Vejo as estrelas dos seus olhos se dilatarem feito cratera no espaço.Sua mão assombreia a pele da namorada que me abre um luminoso sorriso.
O assombreamento do espaço de corrente de luz que habita o distanciamento dos nossos corpos me envolve de calor latente.
Escuto teu coração no meu pulso.Me aproximo e deliciosamente assombreio tua pele do rosto com meus lábios assombreados de vermelho.
Me deleito com a visão de boca vermelha que assombreia tua carne ao lado da namorada.Teus olhos de estrelas me olham e mergulham dentro de todas as paredes do meu ser.
Iluminando todos os assombros empoeirados que habitam meu ser nas últimas tardes.
Continuo te olhando, amor...Enquanto converso docemente para que não notem minhas assombrosas bochechas vermelhas.
Assombrosamente você puxa uma cadeira para que eu me sente ao teu lado.Eu êxito um pouco, mas acabo te cedendo mais alguns minutos de minha presença assombreada pela viva lembrança da união dos corpos.
Converso e assombreio a boca e o sangue com vinho cada vez que a sombra das luzes dos nossos olhos se amam no espaço.
Já não sei mais o que penso, já não sei mais o que sinto.Escrevo a sombra do pensamento, do teu pensamento que me assombreia enquanto me escuta neste momento.