8/31/2007

branca em neve e seus arranhões


um um pouco desta
estrutura morre um pouco a cada
dia

é negro o paletó que se pendura
a tarde é branca
e úmida

a roupa está grudada
em agonias
afeições
e amarras de fio fino


dói se prender
um pouco de mim
a vela aterrorizante
velou

há ali
entre os desesperos
e o choro do luto

uma mulher

que apodrece
em conceitos e fala

a mulher com um lenço
manchado de desesperança

a mulher em pé
acolhendo o frio
a geada
os pés
gélidos

a mulher que acena
em neve

para uma outra
que se vai
e acorda

a mesma
mesma

8/30/2007

tom

acaba de pousar em meu ventre
um poema

está coçando

procuro o sol do dia
escondido atrás do branco
chuvoso

alguém disse que
o sol
deu as caras

a cortina continua morta
o chão cheio de pêlos

um vestígio assombra
o meu ovido

arrasta-se em granidos
forças opostas
o denso movimento
que acelera entre
nossos corpos

a sua flor salvou o meu quarto
da escuridão

a sua peça
as roupas que te escondem
me trancam

quero falar com
a sua pele

mas a porta é um colar de péroloas
anéis, furtos
preços, tábuas
barras de metal

para te ver

quero seu júblo uivando
meus seios

quero a dança monótona
dos seus dentes
ruidosos
peramulando as minhas noites

procuro
a sua sobra
pelas laterais de um suspiro

e na casa
a casa que habita
a rouquidão de uma ausência

a casa
cheia de guilhotinas
cheia de máquinas
rupturas

e o relógio do tempo
apavorando os cômodos

e o tremor das xícaras

e o fulgor

da campanhia que grita

sua parte em migalhas


juntando os pedaços

ao fundo

na procura pelo raio

se difunde

liquefeito como nossos encontros
em sono

um tom

8/27/2007

A flor e a Náusea- Drummond



Preso à minha classe e a algumas roupas

vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?



Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvoe dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.


Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.



Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio

porta do paraíso


tenho uma agonia alinhavada no peito que é ancestral. brinca de ser deus e o diabo.me apavora.quem me vê, desdenha?quero comprar mais que pão.o tamanho do seu olho, me amedronta. esse caminho trilhado, essa bomba vestida de presente. você nunca liga se é tarde demais. fica devanenando as ceitas, oferendas, e me afoita enquanto só penso em bem dormir. essa febre que toma as ruas vestidas de cinza.os trajes pendurados no varal de uma moça que foi abandonada pelo marido.esperas.a sesta de quem precisa curar a gripe e se levantar. off para a janela turbulenta. off para a lâmpada de mais de 100 w. off para a geladeira que impregna a casa de ausências.off para seu conceito abafando o meu etômago.off para suas palavras que são faróis vermelhos piscando a epiderme. tecendo meu arranhão. off para tudo que não for abraço.off para o frio, para um dia a menos de bons momentos.off para os nós, as esperas.espera.espera mais um pouco.
*imagem: J.Beuys

8/23/2007

Henriqueta e Drummond...



A correspondência do afeto de Henriqueta Lisboa e Carlos Drummond que chegou a mim através do Jornal Suplemento diretamente de BH- Minas Gerais copio aqui, para delícias entre os poucos e especias leitores deste Blog:


"O seu livro chegou nos primeiros dias de inverno.Eu estava com uma gripe miúda, mas implacável-que até hoje me persegue. Instalada na minha cadeira de balanço, fui lendo o que você enviou.Além do Devaneio, tive o conforto de conhecer, devagar e detidamente, o balanço de um grande coração. Como pode ele transmitir tranquilamente, para lá, para cá, ente o viver quotidiano e as coisas inefáveis?"


Carta de Henriqueta respondendo e agradecendo a Drummond o envio do livro Cadeira de Balanço.



Outros Trechos de cartas de Henriqueta


"Minha avó costumava acordar a netinha tocando-lhe o rosto com uma folha malva. Você agora me saúda-irmão-com a mesma delicadeza de antigamente."



" Depois de ler e reler Sentimento do Mundo, quero manifestar-lhe a impressão que me causou este livro estranhamente sofrido, intensamente realizado. Não conheço, na poeisa brasileira, livro mais grave do que esse;nem mais sóbrio na sua plenitude artística, nem mais triste, na sua substância anímica. Do absoluto real, e só dele, se alimenta a sua poesia: grave, pois, pela força do elemento humano. Sóbrio pela concentração dessa força nos limites de uma arte impressiva, talhada a golpes firmes e fundos. E triste pela obstinação que o leva a refletir unicamente o lado cruel da existência. Talvez se explique o sentido da sua poesia à evidência de um choque entre cultura e civilização, se é que à primeira se condicion o espírito e à segunda matéria. Como poeta da hora presente ("Mãos dadas"), você raliza, com a sua arte seca e breve, uma espécie de balança em que se equilibram, de um lado, as nostalgias secretas de um mundo apenas entrevisto e logo perdido (" Havia jardins, hava manhãs naquele tempo!") e, de outro, a irretorquível necesidade de viver a vida quotidana, a vida de hoje, com todos os seus apetrechos de emergência"

A última lâmpada




Meu amor. Eu estou me desfazendo. Mantenha-se longe e eu me desviarei no primeiro vento.Montanhas. Você calcou, subiu, desceu, fez o que quis. Não aceitei, mas no primeiro dedo me joguei. Você quer que eu beije seus pés?Você não quer saber nada?Meu amor, o dia está acabando mais uma vez. Mais um dia sem o seu respiro perto. Você já esteve aqui. É com a velocidade e a absurdidade de um sonho, que você me toma. E é tão distante do real e próximo do sonho, que eu simbolizo matematicamente e milimetricamente suas aspirações. Estarei próxima enquanto você dorme.Nada passou.Meu amor, sinto que um pouco de mim já se dilui na sua demora. Vou transborando entre os deus dedos como grãos frios e finos de areia, me esparramo, você pisa, pisa, pisa. Eu juro que plantei mais flores. Mas as suas raízes é que povoam as escadas da casa. É a décima vez que não sei se sigo a placa, ou afoito a sua presença colada entre os dedos do meu medo.A sina prorroga suas entrefaces, eu te assisto na tv. Você passa o brilho dessa estrela fantasmagórica em muitos quereres. Meu amor, a culpa é minha de te querer ainda? Meu amor, mais uma vez, a última luz da noite na mais dolorida janela da vizinhança é a minha. Suas fotos estão a prontidão. Seu elixir reside no meu suor, eu tenho certez. Quanto tempo já durou o seu orgasmo com outro álguém?Meu amor, a única lâmpada que iluminava a cama está se apagando eu estou com muito frio.

8/20/2007

"lista de coisas brancas*coisas que podem ser, que parecem, ou que eram brancas



arroz.açúcar.nuvem.sal.caderno novo.tontura.neve.pérola.céu nublado.sussurro.borracha de apagar.concha.minha geladeira.cabelo branco.vermes.pasta dental.eco.naftalina.dia de sol forte na praia.ovos.morte.tinta de parede.vômito.guarda-pó.cocaína.maionese.roupas de médico e dentista.larva de inseto.dados.pasta d’água.remela.papel.nervo.página.palmito.branco do olho.máscara para pó.quando se esquece de repente.mingau de aveia.dor de cabeça.melão aberto.tempo que não passa.papel toalha.dentro do pequi.sabão de côco.caneta quando falha.vôo.pedriscos de aquário.farinha de trigo.alho.dentro da barata.polpa de fruta-do-conde.franqueza.ossos.quase no fim de alguma coisa.metade da zebra.pelicano.glândula parótida.anseio.sofá.barba.arrepio.miolo de pão branco.sêmen.dentro da semente da fruta.esqueleto.rabo de macaco comodo.guardanapo.couve-flor.insônia.sulfato de bário.cimento branco.iceberg.dentro da maçã.falha.travesseiro.gaivota adulta.urso polar.máquina de lavar roupa.dentro da jabuticaba.magia branca.forno microondas.leveza.roupa delutador de sumo.marfim.entre a polpa da laranja e a casca.cabra-das-neves.flor da figueira-do-inferno.cegueira segundo Saramago.quando a unha cresce.papel higiênico.leite.neblina.dentro do travesseiro de penas.faixa de pedestres.saudade.instante antes do desmaio.saco de leite tipo a, b, c.ovos de siba.legenda de filme.shampoo.varinha de condão.plâncton.cano de esgoto.farinha de mandioca.pólo sul,mosquiteiro.nudez.copo de plástico descartável.interruptor de luz.glândula mamária.cursor.talo de couve-chinesa.desejo.lacre do vidro de requeijão.pólo norte.borboleta.bola de golfe.gás lacrimogêneo.elefante branco.buda.barriga de pingüim.chuvisco de tv fora do ar.flor de heléboro.creme para cabelo.atrás da foto.algodão.paz.secreção nasal.vestido de noiva.pele de quem não toma sol.fumaça de cigarro.sabonete.chocolate branco.ovo de piolho.creme de espinhas.flocos de arroz.talco.bolor de pão.iglu.caspa.flash.nabo.areia de praia.cheque em branco.dente de leite.prédios públicos.leite de magnésia.filhote de urubu.gaze.avião.flor de feijão.coruja-das-neves.dunas.substância gelatinosa de ovos de sublingual.deserto.cal.gato branco.pensar demais.protetor solar.espaço entre as linhas escritas.prato de porcelana.horizonte.requeijão.fantasma.gordura vegetal hidrogenada.lençol de hospital. Coelhos.salada de repolho cru.saponáceo.luz.nosso carro.estrelas.animais albinos.

*parte do trabalho de Raquel Stolf "Lista de Coisas Brancas"



"Houve um silêncio. O entardecer escurecia a sala. Sem ruído, com pés de prata, as sombras vinham do jardim. As cores desmaiavam, desprendiam-se lentamente das coisas"

Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, p.93
feche os olhos
e me abrace

a cera endureceu
estou tonta
entre os pés
faíscas

entre as unhas
sobras de uma mulher
que escorreu pela cadeira
se remontou
e ao invés de brotar
é fel em terra
é fel que escorre

é fel de grito comprimido.

Viva
a planície de uma janela
limitada
uma reivenção
dos galhos aglutinados
de ruídos

eu estou pó hoje
assentei entre as mobílias

e estou seca

sem passagem para falar
farfalhar

feche os olhos
feche

quero ouvir você rir

estou
no seus olhos fechados

quando me abraço

8/15/2007

Gullar...Gullar...ar..ar

PRIMEIROS ANOS

Para uma vida de merda nasci
em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)


E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul


E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas .
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

(Buenos Aires, 1975)

8/10/2007

*Um dia no escuro



“Meu amor, estou esperando por você. Quanto tempo dura

um dia no escuro?

Ou uma semana?A fogueira se apagou e eu estou com muito frio.

Deveria me arrastar até lá fora, mas haveria o Sol.

Estou desperdiçando a luz nas pinturas e escrevendo

isso.

Nós morremos. Nós. Morremos.

Morremos ricos de amores e tribos, sabores que

engolimos, corpos nos quais entramos e nadamos como

rios; medos que escondemos como nessa caverna triste.

Quero tudo isso marcado no meu corpo.

Nós somos os verdadeiros países,

não as fronteiras nos mapas, com nomes de homens poderosos.

Eu sei que você virá e me levará

para o palácio dos ventos. É tudo o que eu queria.

Andar nesse lugar com você. Com amigos.

Uma terra sem mapas.A lâmpada se apagou e estou escrevendo na escuridão."



*Carta-parte do roteiro do filme " O paciente Inglês"

Apareça*



Apareça.
Por favor, apareça.
Antes que as migalhas
desta aberração
que vejo no espelho
torne-se mais um esboço
do passado.
Antes que eu nasça
como um vendedor de caldo de cana,
um mestre argentino de tai chi chuan,
um policial, um papagaio,
uma cantora,
um indiano que rouba água.
Antes que o tempo
te traga de novo
sem o aviso de que teu toque
abre caminhos de dor e insapiência.
Surja
na simplicidade
de trinta minutos,
não daqui a três mil anos.
Traga as malas no carro
para ficar
para não me dar
perfume à perfídia
que é dizer
até a próxima
encarnação.
*Enzo Potel

8/07/2007

O quarto- César Félix- uma alegria por aqui!






O primeiro quarto estava sujo
o cobertor confundia-se a uma toalha
molhada de poesia e no espelho
a última declaração de amor

O segundo quarto não sabia as horas
de pedir desculpas
dizer adeus, amar

O terceiro quarto partiu
levou junto duas caixas de livros
uma caixa de brinquedos
e um saco de memórias

Tudo cabia numa carroceria
velha e empoeirada

bem ao lado...um retrovisor quebrado
para que não pudesse
olhar para trás


O quarto estava triste
os livros entreabertos
os bilhetes rasgados
o coração partido

e um ventilador ligado
para que não pudesse
juntar os pedaços

8/04/2007

Documento de saída

Insisto na inútil resistência
De sentir seu perfume entre
Os jasmins de plástico, no vaso que enfeita a janela
Abandonada por mudanças

(...Só eu e todo os papéis do mundo sentimos sua falta)”
Mia Vieira


Vou escrever este documento, porque talvez um dia você possa passar os olhos por algo que tenha as minhas palavras implícitas, ou talvez alguém te conte uma história como essa.
Este é um documento de uma morte que brota na fresta de uma porta fechada. Você já ficou abismado, sem saber para onde ir, olhando para sempre a porta, que já esteve escancarada?Esperando a sua chegada? Embora eu pareça um totem de força e alumínio bruto meu íntimo é aquoso e cremoso, eu sou quase inteira pastosa a primeira palavra. Depois desta sua fuga ando debatendo por todas as paredes o por que de você ter aparecido. O por que de eu lembrar ainda com dor os seus traços já sem mim.
A sua fuga desata qualquer nó e qualquer laço. Embora as vezes eu também quisesse ser uma amarra sua, assim talvez você perderia mais tempo tentando me desatar e assim permaneceria mais preso aos meus apreços, mais atento a mim. Mas desde o início nós sempre voávamos como proposta ensolarada para os dois, seria injusto agora eu querer ser um barbante amarrotado para estar próxima de você.
Com o tempo e a esperança plantada no peito de quem você tem vontade, você sai com um cesto cheio. Quem tiver um belo sorriso leva do seu fruto. Você percebe, faz perguntas, e toma nota no seu questionário, qual foi a bela moça que ofereceu um abraço em troca de uma cesta vazia. Você é o rei de fazer mais feliz a qualquer mulher: segurança, taipa, veleiros, suspiros, vinhos, planos de viagem, jangada, paisagens e florestas.
E, no entanto, ao primeiro momento de tremor no barco, você não divide o medo não ata os braços, não se preocupa. E chegam de civilizações opostas, mais mulheres infundas que querem experimentar das suas cestas de oferecimento. Você sede a mais um contrato de prazer, e embora fale gostar de voar, você se diz preso a tudo outro, menos a mim.
Em meio aos maremotos amarelos, você expulsa as outras anciãs fica confuso e se tranca sozinho nas ruínas do que construiu. Novamente, não me dá a mão. Foge, foge como se não tivesse prometido passeios, como se não conhecesse mais o meu corpo, como se não tivesse falado as esperas, como se não tivesse dito epígrafe s de grandes amantes, como se nunca estivesse inteiro ali.Você não falou que estava. Mas o seu silêncio e o seu suspiro em mim me davam a certeza que sim. A sua fuga rompe todas as vertigens prazerosas que nós atingimos entre goles e línguas. Você fez brotar algo neste deserto árido e seco, uma terra que há muito não havia nada, mas você coroou jasmins em uma planície airada entre os meus seios. Conseguiu obter umidade e nutrir a pele.
A sua fuga é como a dor de um filho desaparecido.
Este documento é para que em qualquer lugar que esteja, antes de sair, nunca plante uma constelação nos olhos de quem ainda não conhece a luz

8/02/2007

Caderno de Sonhos



Esses dias, aconteceu que eu achei um caderno de poesias que tínhamos quando ainda estava no Ensino Médio. Éramos um quarteto oficial movidos e apaixonados pela palavra poética..Um tanto precoces, eu diria, porque o material tem raiz forte, e eu tenho certeza que este caderno trasformou todos que a ele pertenceram e vice versa..Com a vontade de descobrirmos a poesia que nos habitava, mal sabíamos nós que estavamos em estado de graça acolhendo passagens belísssimas e tão verdadeiras experiencias puras das escolas poéticas que estávamos imersos. Em cima do telhado, escalando morros, rindo de bicicleta pelas cidades vizinhas.
Árcades, sonhadores, bucólicos, profundos, amigos , espelhos e tempo, que no reflexo ainda me leva a mágica aventura de sempre ter amado a palavra..

Salve a poesia, e a sensibilidade de seus meticulosos amantes do mistério que a envolve.



Sonho

(Rodrigo Azeredo)


Queria agora escorregar as encostas

[dos meus pensamentos

Desejaria comer aquelas framboesas rasteiras

Que só tem no décimo quinto sonho da

[noite passada

Queria também sentir o calor de Marte

Ao invés de cozinhar em sua superfície.


Quando estou sonhando posso viajar bastante

mas não sinto nada

não consigo

mesmo querendo


Meu espírito não tem tato

Não tem nada

E eu não posso sentir aquilo que mais

[queria

8/01/2007

Parati*




Era uma cidade insituável e de cores cambiantes aquela, o território que subvertia os sentidos: o dia projetava tons lilases e o prateado dos astros; a noite incendiava a ponte de amarelo solar, a irradiação de um fogo primitivo.
Era a cidade das estrelas próximas: esbarrariam nas torres altas - se estas lá existissem, se tivessem sido erguidas por um monarca excêntrico. Era a terra do vento espaçoso, do ar marítimo adocicado.
Atravessei a ponte e virei o rosto admirando o balé das sombras na calçada. Bamba, lancei meus cabelos como quem atira desajeitadamente uma rede ao mar, transformando meu corpo num manto embebido de letras, de prosa reverberante, da poesia declamada nas praças.
Sorri para uma câmera imaginária que captava de Júpiter, do mar ou da esquina mais próxima, a graça ligeira do meu corpo para eternizá-lo num quadro a ser desvendado pela arqueologia futura.
“Observem a aparente falta de peso dessa figura ancestral”, diriam os homens ulteriores, intrigados com a levitação dos corpos tomados de contentamento pleno.
E eu, no tempo pretérito mais-que-perfeito, airosa e desfragmentada em luz, escutava as perguntas de Davi num idioma incompreensível e alheio à mímica dos olhares perdidos.
“Está tudo bem? Quer ir a algum lugar?”, inquietava-se cuidadoso para, em seguida, dar-se conta de que outro lugar já não havia. Lá fincaríamos a estaca de madeira maciça, símbolo do fim da procura, sinal que legitima a posse da terra desde sempre destinada aos poetas, aos insensatos, aos de parte alguma.
Eu ria e ria. Ria de vinho e de pertencimento. Ria para Bel com sua blusa amarela a repetir a cor dourada da cidade-farol. Ria, enfeitiçada por seus brincos orbitais – duas mandalas feitas de rede de pescador –, embriagando-me de seu desprendimento cigano, de sua sábia alegria sofrida. Contemplava o deslizar de seu encanto para Lúcio, que o aceitava como quem recebe um presente delicado: abrindo os braços, girando o corpo, gargalhando do absurdo da vida, sem nunca comprometer o equilíbrio do chapéu havana, prestes a nos exibir um número de sapateado.
E uma vez mais Davi surpreendia meu olhar volante, meu rosto diluído nos acordes da canção inaudível, meu vulto impregnado do ar liquefeito dos canais. E então eu me condensava em torrente cálida, para lavar a alma e as calçadas, para infiltrar-me no vão das pedras e assim permanecer, eternamente sábia, definitivamente louca, a me alimentar das luzes transitórias, do vento temperado pelas algas e peixes.




*Carla Franco e o seu lindo sorriso.